segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Soberania

Quando viu o estado de podridão em que estavam as suas coisas, recuou. Piscou os olhos numa triste vontade de materializar a fantasia que traria o passado que seria plástico agora, mas nem assim a decomposição se esvaiu. Deu dois passos em direção a porta, mas ela também estava morta, o olho embranquecido. Andar de um lado pro outro não ajudaria, pois o chão já não agonizava. Não era possível continuar lá dentro com a quantidade de moscas varejeiras que sobrevoavam os móveis. A lâmpada queimada estava repleta de teias, enroscadas em insetos zumbis e uma enorme aranha preta, do tamanho do seu pé, espreitava entre a parede e o teto
   O primeiro impulso foi o de chorar, mas nem isso era possível. Com pavor, agarrou-se em si e permaneceu de pé, convencendo-se de que seria possível transformar a morte em vida, que iria dar um belo trato naquele horror e fazer a vida pulsar bela novamente, com o canto dos pássaros a encher o ambiente de luz, o cheiro de flores ser o perfume permanente dos dias gloriosos que estavam para raiar desse seu impulso, o renascimento corajosamente magistral que construía em seu interior alimentava suas esperanças...
   E então as paredes caíram, levantando uma nuvem negra que exalava morte. Dentro de si alguma coisa também morreu.

domingo, 14 de setembro de 2014

Rito de Morte

Uma chama apaga aqui
Uma vela acende lá
badaladas etéricas
notícia cometa
cobra eficiente
serpenteia nas bocas
nos telefones
nos e-mails
são as mensagens comunicado macabro
... morreu...
... faleceu...
...se foi...
...parou...  
É fim...
e o começo da grande dor
Choram lágrimas de sei lá o que
penam
sentem
e o morto:
inerte
Emerge na vida como nunca antes
tem o contexto
tem o texto
e a família comparece
gente que não se vê há milênios
e se encontra
e se ri
mas ri comedido
que não se ri em velório
qualquer manifestação de alegria pode parecer zombaria
Mas é impagável conhecer a família
tem o mágico-o palhaço-tem a tia católica-a crente-a macumbeira-o primo tatuado-o tio rico-tem quem você nunca viu-aquela que fala que trocou suas fraldas-tem quem não conversa com você-tem quem te elogia-tem os abraços-as palavras ternas-os namorados-e tem o morto
ah é, tem o morto!
e alguém sem noção que diz que ainda pode sentir seu espírito
Energia densa que aos poucos é elevada
e aí tem a cena dramática
tem quem desmaia
quem toca música
quem chora mais alto
quem chora baixo
e tem madrugada adentro
A canseira do defunto em ser velado
e tem o outro dia...

Voltam as visitas
vem as bolachinhas
e o café
os colegas de trabalho
o embriagado
o que reclama
e a obscuridade interna que se vai com o sol do novo dia
E aí... vem papel
vem mestre de cerimônia
vem mais gente
vem mais café
pizza
criança
jogo
calmante
e
blém!
A hora do enterro.
Então o medonho monstro da dor e do sofrimento infinito se levanta mais uma vez
pairando fim do mundo sobre as cabeças
e a comitiva
amparada por promessas de vida eterna
segue rumo ao cemitério
(não sem antes reclamar de algo ou alguém)
E o rito da morte da seu prosseguimento
Já não havia mais choro
e voltaram a chorar
Já não desmaiavam mais
e voltaram a desmaiar
Tudo volta como se não tivesse passado
a velhinha quase surda
faz perguntas desconcertantemente altas
mais vigorosa que o túmulo penetrado
E lá vai o caixão
a alegria
o bom humor
a energia ali é definida
enterra
junto com o corpo
o dia
o mês
e até o ano
Os sinos tocam
Badaladas
a multidão começa a não ter o que fazer
e a consolação arruma seu espaço
É hora de enlutar-se
se vestir preto
colocar óculos
e chorar
mas

para que mesmo?