quarta-feira, 28 de maio de 2014

Amor

Quando desligou o chuveiro um frio terrível a invadiu. O ar gelado penetrou suas narinas e a pele se arrepiou. Pés e mãos estavam duros, o ar saía em névoas e todos os órgãos se comprimiram a fim de reter o mínimo de calor. Tomando-o por normalidade, apanhou a toalha e passou em seu corpo como se fosse palha de aço; subiu e desceu cortando as fibras, os tecidos, desfiando o cabelo, que pingava ainda que o secasse, fazendo molhar o corpo e aumentando o frio.
     As janelas estavam fechadas e se transformaram em lousa para o giz-dedo fazer o que quisesse, mas eles estavam mais ocupados correndo contra o tempo. Porta aberta e parecia que a Antártida entrava pela sala, os móveis alvos, as paredes, os objetos, os cômodos. Do teto do quarto pendiam estalactites que ainda pingavam. Cada gota um ângulo do que se apresentava. Uma fumaça rasteira ocultava partes do chão e a geladeira era inútil. Tudo estava preso às últimas formas, todas as vibrações congelaram, em céu algum havia sinal de sol ou de calor.
     Desejou não estar morta. Mas não sabia por quê.
     Tentou se distrair com o computador ou com o celular, mas os botões estavam duros, tentou ler, mas os livros não abriam, não dava pra deitar, ou pra sentar, nem sair de casa, pois as portas estavam completamente cerradas. Começando a ferver o pânico, foi até a cozinha pra pegar um martelo e descobriu que não conseguia, então, num arroubo de desespero, chutou o armário e ele inteiro caiu, em cacos. Todas as coisas que estavam dentro dele se desfizeram como vidro.
     Arriscou chutar a porta também, mas ela se recusou a abrir. Com um sorriso no rosto pela descoberta não conseguiu quebrar mais nada, pois algo se rarefizera em seu íntimo. A cabeça começou a funcionar descomunalmente. Então parou e respirou, a garganta secando a cada segundo. Entendeu o que devia fazer, só não como devia fazer.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Meio

Eu preciso dizer 
sou nada
mas só eu posso dizer
Porque tem uma bola felpuda
de juba imponente
no meio do céu
regendo

Eu preciso enviar
mensagens enfáticas
pra ela entender
que este filho da puta
é só gente
como qualquer
vivendo

Eu preciso precisar
se não é isso
me enlouquece
e me perco na matéria
me esqueço das esferas
e fico tempo demais aqui
morrendo

e renascendo

e morrendo

e renascendo

e morrendo

e renascendo

Eu preciso também narrar
essa história
faz parte da regência
me salva, me da licença
me tira do buraco
me mostra ao que eu estou
cedendo

Não preciso de nada
só que gostem de mim
e se não me amarem
melhor assim
pois me venço
e avanço
transcendo

balanço

...

sábado, 17 de maio de 2014

Dos prelúdios

Sou um ser humano errante
vítima de mim mesmo
pelo meu próprio fatalismo

Tenho medo de auto confiança demasiada
pois lá na frente eu descubro que tava completamente enganado
e capoto

Mas digo isso com a alegria de uma criança que acabou de descobrir que pedra mata passarinho

E vou ter que esconder essa porra por causa do meu carma

mas é preciso falar!

Peço socorro sem gritar
porque eu balanço mas não caio
e me alegro por poder estar escrevendo tamanha verdade
e trazendo-a para minha consciência

Sou um fracassado
e isso é bom!
É bom poder constatar que a vitória não é o único caminho!

Erro mesmo
e fazer o que?
Erro tentando acertar
Mas como estou ser humano
errante me movo
na tentativa de destruir aquilo que não cabe mais.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Perpétuo

Tenho de sagrado o que tenho de profano
Cultuo Deus hoje
e o Diabo amanhã
E não é porque estou em cima do muro,
não
Eu sou o muro
Minha porcentagem doce é igual à salgada
Meu altar tem asas e tridentes
Porque Deus é Tudo
O Diabo também
Detesto regras porque elas são limitantes
O mundo É
Perpétuo da prisão preventiva passageira
entre a ilusão e a realidade
E se por acaso eu mandar pro inferno hoje
amanhã estará no céu comigo
E vice
e versa
sou do mundo
e verso
porque não cabe
no inferno
te levo, me levo, me elevo
ao céu
capoto em seguida
pois não aguento
Depois me elevo de novo
pois não suporto
E entre não aguentar e não suportar
me empurro pra frente
porque atrás não tem nada
e parado não dá pra ficar.
Uma vela pra direita
Uma vela pra esquerda
E de vela em vela
vou colorindo o meu mundo
Equilibrado em uma constelação
de estrelas brilhantes e buracos negros
de luzes e sombras
de vida e morte
perpétuas...

Visionário (?)

Senti a noite bater no meu rosto
e desejei demorar semanas pra terminar este poema
Dizer que a semana passou e eu não acabei
Mas essa noite não cessou
nem o vento
nem o poema
Só eu que cessei
cessei
de tentar
ser 
poético
E concretei tanto que até dá pra por cimento
E sepultar esse texto que não fala da semana
nem da poesia
nem é sobre a noite.
Sepultarei!
Sepultando virão flores
pelo menos
As flores que eu colocarei sobre a minha criação
Morta
que trata do imanifesto futuro
Que trata de nada
Mas do que deveria tratar?
Se eu fosse Merthiolate sonharia ser Ayahuasca
E eu subiria cabeças àfora
curando mais que feridas
criando formas vivas
contrariando estes versos que
portanto
devem acabar agora.
BOOOOM