quinta-feira, 8 de setembro de 2016

o infeliz do metrô

Todo dia, no mesmo horário, faço o mesmo caminho. Saio às 7h, passo na padaria, tomo meu pingado e pão na chapa, pego uma água pra viagem, cumprimento o cara do caixa, pago com a nota de dez e dou onze passos até a entrada do metrô. São quatro estações até o meu trabalho. Desço na estação, cheia como de costume, contorno as filas, passo os guichês, atravesso o saguão e é na escada que noto alguma coisa fora do lugar.
   No meio do fluxo do sobe e desce, antes da escada rolante, há um homem ajoelhado, com as mãos estendidas, como se em sua testa houvesse uma placa escrito PEDINTE. Vestia uma camiseta verde suja e rasgada e os pés secos saíam por baixo da barra furada de uma calça que era quase um pano de chão. O fôlego fugiu de mim assim que botei os olhos sobre ele e o calor incômodo da indignação subiu pelo meu peito. Não me atrevi a olhá-lo duas vezes. Subi as escadas com um comichão nas minhas orelhas e marchei até o meu escritório. Fiquei com aquele homem o dia inteiro na cabeça.
   Quando entrei na minha sala, me dei conta de que não correspondi ao bom dia da Marli, secretária. Fechei a porta, os olhos, abri a boca, torci meu pescoço e tentei me concentrar nas minhas coisas. Às 10h tive uma reunião e, enquanto o Márcio chato falava, pensei de novo naquele maltrapilho. Só de pensar em lhe dar dinheiro fiquei escandalizado. Que é que aquele sujeito estava pensando? 
   Às 11:45 saí da reunião e ao meio dia já estava pronto para almoçar e o fiz, com aquele velho na mente. Interagi o que pude com meus colegas e tive que tomar um antiácido pra comida descer.
   Às 14h eu avistei da janela um mendigo do outro lado da rua, e fui parar novamente no metrô, com aquele infeliz ajoelhado ao pé na escada. Não sabia por quê ele me incomodava tanto. Visualizei a mim mesmo erguendo aquele miserável pelo que restara de sua gola suja e prensando suas costas ossudas contra a parede, depois me vi estendendo-lhe a mão, me vi dando uma bofetada em seu rosto, me vi até beijando seus lábios. Me deparei, então, com a hora de ir embora e tentei compensar as ignoradas de mais cedo com sorrisos, não foram muito verdadeiros, mas surtiram o efeito esperado, o povo sorriu e eu parti.
   Como uma história já escrita, reencontrei o velho no metrô. 
   Estava ainda naquela posição humilhante. Será que saíra dela em algum momento? Desci devagar dessa vez e reparei que ninguém lhe dava moedas, na verdade as pessoas o evitavam. Quando cheguei mais perto, meu primeiro impulso foi o de gritar "levante-se!" com toda ferocidade que podia reunir, mas não o fiz. Passei por ele e, para a minha surpresa, nossos olhos se encontraram. Por milésimos, esquadrinhei seus grandes olhos verde-musgos, pareciam dois faróis apagados, afastei os meus depressa e segui catraca adentro, o coração aos pulos.
   Não acordei pra trabalhar na manhã seguinte, tampouco me deitara pra dormir, sequer chegara em casa. Era que, daquele momento em diante, alguma coisa dentro de mim passou a esmolar também, e eu não conseguia me concentrar em outra coisa, só em matar a minha fome.