sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Além

   Havia muito tempo que estava preso entre as paredes descascadas de seu apartamento de um quarto, um banheiro que dava choque e um armário que cheirava a naftalina mofada. Gotas de suor frio e de lágrimas quentes enchiam os recipientes que se espalhavam pela habitação, tudo o que pensava escorria, não era por outro motivo que mantinha garrafas, garrafões, baldes, taças, latas, tudo o quanto era preciso para manter as dignidades correspondentes de cada ideia liquefeita em seu devido lugar, na devida ordem . Ele estava sentado naquela mesma cadeira de assento redondo e espaldar quadrado, vidrando a rua por trás de umas folhas secas que não eram contempladas pelos momentos de chuva que saíam de sua mente, mas suas lâmpadas não se moviam, estavam apagadas, só o que se movia tinha o acontecimento de dentro pra fora, mas dentro do apartamento, como cada universo que existe em cada copa de árvore e que não temos capacidade de penetrar. Porém, raízes como as dele eram raras, perigosamente belas e, pra ele, enclausuradoras. Chovera apenas uma vez e, nesta ocasião, chegara a abrir a porta, mas aquele frio, aquele que nos impede de adentrar os carrinhos de uma montanha russa, o congelara; e aquele fenômeno, que, por ser fenômeno, descascara suas paredes e estragara seus móveis, nunca mais aconteceu.
   Poderia carregar seus pensamentos em um caminhão pipa e irrigar ruas e vielas com suas ideias, sem desperdiçar nada, aliás, ninguém que conhecera poderia chamar aquilo de desperdício. Talvez seu ato fosse censurado, no mais, ignorado, mas de qualquer modo, não ia mais se afogar pelas visões daquele aguaceiro insuportável que atravessava a intransponível barreira do invisível.
   Como os cabides balançavam, as portas do armário tremeram e se impeliram pra frente e, novamente, um grito de suplício, certamente embebido de naftalina, soou para onde ninguém, a não ser o seu emissor, ouviria:
   - Socorro!
   A criatura detida agitou-se à medida que as roupas daquele ser recomeçaram a ser molhadas por pensamentos e ideias que antes não existiam e que poderiam ocupar, se ele quisesse, alguns lugares para além de seu apartamento. Mas, por algum aspecto sombrio de sua natureza particular, numa consciência que não transcendia a compreensão do é querer e poder, mais um recipiente, e dessa vez um vaso, passou a ser enchido. O dono da voz berrava de dentro do armário, e ele cada vez mais absorvido, como água nova em esponja velha, cada vez mais imerso em um aquário cujo peixe não vinha de jeito nenhum à existência.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Dia das Mães

Por que aquela sensação de dias das mães causava-lhe náuseas não era um mistério, ao menos pra ele. Entrou no metrô por volta das onze e se viu cercado de gente que carregava sacolas gigantes com embrulhos pequenos, panelas encaixotadas, pacotes coloridos e cafonas que acompanhavam vasos e mais vasos e mais vasos e mais vasos e mais vasos de flores. Sem exageros, sentia vontade de vomitar, e a culpa não era do pólen (ou do plástico), todo aquele incômodo difícil de disfarçar partia dele mesmo e estava para além do seu querer.
   Não que fora filho de mãe negligente, muitos menos de chocadeira, fora até bem criado, tivera o que as condições permitiram, estudara em colégios regulares e trabalhava por conta própria desde sempre, afinal, sua mãe, uma mulher consciente e trabalhadora, não lhe dera tudo o que ele esperneava ou chorava para conseguir, e ainda hoje não fazia isso!
   Não tivera pai por muito tempo, seria mais um motivo para se apegar à mãe, mas não, sentia-se aborrecido em ter que dividir o mesmo quarto apertado, o mesmo guarda-roupa mofado, a mesma mesa que ocupava grande parte da cozinha, o mesmo sofá de dois lugares, o mesmo teto inacabado. Dividir o sangue já podia estar de bom tamanho!
   Muito pouco via a mãe e fugia o quanto podia, pois quando se encontravam, ela testava sua paciência com uma carência desenfreada que lhe causava pensamentos pouco saudáveis (para a sociedade).
   Já se cansara daquelas conversas-terapia com a mãe, em que ele tinha de fazer pouco esforço para dizer que sim, ainda a amava e, sim, todas as crises eram da cabeça dela. Tinha vontade de bater a cabeça na parede quando a mãe lhe dizia que estava diferente, o que ocorria com freqüência, aliás, todas as brigas eram embasadas no quanto a mamãe sofria por seu filhinho não ser aquilo que ela quisesse que ele fosse, ou pelo menos fazer algum esforço para parecer um pouquinho mais agradável do que estava sendo.
   E hoje, hoje era dia das mães! E como a mãe era tradicionalíssima, teria que comprar algum presente, teria, teria de abraçar, beijar, desejar feliz Dia das Mães, dizer que a ama, esperar um olhar carinhoso cheio de lágrimas de paixão, um “eu te amo muito, meu filho” e um abraço apertado. Para isso, teria de fazer uma cara decente de bom filho, um sorriso, com os olhos incluídos, e um terceiro abraço em retribuição.
   O problema era que não gostava mais da mãe. Problema porque, aparentemente, ninguém seria capaz de compreendê-lo, e tudo isso, garantia-lhe, não era ingratidão. Não era! Reconhecia-a como a mulher batalhadora que sempre fora, nunca deixara de dar amor aos filhos e fazia o que podia para que a paz reinasse em sua casa traquejada de imagens de santos e patuás de lugares que ela nem acreditava tanto assim.
   A culpa não era dela, ele simplesmente deixou de amá-la, como talvez amasse em outras épocas. Não suportava sua mãezinha com aqueles momentos de amor escorrido que o tiravam do sério. Já chegara a desejar que ela morresse para que o deixasse em paz, e também para que não percebesse o estado de desinteresse em que o filho entrara: disso ele tinha consciência, preferia ele morrer a deixar a mãe saber sobre seus sentimentos (ou a falta deles).
   Ainda mais hoje, não tinha desculpa, teria que voltar pra casa com um presente e uma máscara de afeto. Dividia-se pensando em um presente e numa maneira de entrega que não carecesse de muito contato, mas que também não sugerisse uma frieza de sua parte.
   Não se importaria de gastar o quanto fosse, se tivesse, divertiu-se em imaginar a compra de um passaporte para qualquer país e várias diárias com tudo pago... Não! Tinha que ser agora, o que entregaria para a mãe, no Dia das Mães, no fim do dia?
   Plantas ela já tinha demais, CDs não escutava com freqüência, filmes não assistia, livros não leria, para roupas não sabia do que ela gostava e nem o tamanho que usava, sapatos muito menos...
   Nesse momento entrou um vendedor no ônibus em que tomara maquinalmente, pois se perdera em pensamentos. Antes de mais nada, meus senhores... desejou um parabéns à todas as mamães, dissera que elas eram abençoadas, que sem elas nós não estaríamos aqui e blá blá blá.
   Já ouvira dizer que, para as mulheres, ter filhos era um divisor de águas, ele tinha um pouco de receio, tinha planos de adotar uma criança e temia que seus sentimentos reverberassem no universo contra si. De birra, não comprou o chocolate gorduroso que ele vendia, sequer o olhou, mas não deixou de notar que o vendedor batera sua meta para aquele circular.
   Voltou a pensar no que daria à mãe, talvez fizesse um cartão como aqueles da escola, parece que uma amiga sua ganhara um do filho prematuro, foi dali que lhe surgira a idéia. É, seria um símbolo para a mãe, e além de poético resgataria a memória do filho que já não existia mais naquele corpo.
   Ele teria que dar pessoalmente e receber tudo o que não queria, mas ela... ela ia gostar de qualquer jeito! É...
   Pelo sim, pelo não, resolveu abrir mão de suas travas e decidiu-se pelo cartão infantil.
   Então se sentou ao lado dele um garoto, acompanhado da mãe e da irmãzinha, que se sentaram em outro banco. O menino trazia um cartão maior que as suas mãozinhas, provavelmente recém trazido da escola, a garotinha não tinha posse de cartão nenhum e seus olhos estavam marejados, a mãe vestia luto e falava engrolada ao celular. Num lapso de memória, ele correu pro ponto e deu o sinal.
   A papelaria não estava menos abarrotada de gente cafona, mas ele estava conseguindo até achar graça nisso tudo, não que não tovesse consciência do mundo capitalista em que vivia, e que toda essa luz rosa em torno desse dia tinha uma energia monetária, mas era até bonito ver o entusiasmo intrínseco na cara das mães que ainda eram filhas da mãe e que, portanto, esse dia significava o dobro pra elas que para seus rebentos.
   - Pois não? – disponibilizou-se a vendedora iluminada após dar um tchau risonho a uma menininha de fitas amarelas.
   Quando entendeu o presente que ele propunha à mãe, a moça ficou quase intimamente emocionada. Ele pagou a loja, desviou de flores e flores e flores brancas e amarelas que dançavam em sua direção e se sentou num banco recém pintado da rua,

   Querida Mamãe...

   As idéias mais românticas e criativas ele escreveu em letras garranchadas, como há doze anos escrevera.

   Um mundo inteiro de felicidades pra você.
   Seu filho que te ama.

   Desenhou graminha, uma casa com chaminé, um sol que pegava a orelha esquerda da folha, pássaros em V e dois bonecos, um masculino de tamanho menor que um feminino, este com longos cabelos amarelos e olhos verdes.
   Finalmente feliz, levantou-se de um salto e tomou o rumo de casa. Então seu celular tocou.
   - Alô?
   O cartão escapou-lhe à mãe quando a irmã, mais nova que ele, com uma voz engrolada, dissera em tons obscuros de pétalas mortas:
   - Mamãe morreu.