Chovia melancolia, o céu nublado estava prestes a desabar, carregado de interiores desconhecidos e abandonados inalcançáveis.
Então ele saiu de casa, radiante, andou pela avenida triste sorridente, descalvado, os joelhos marcados pela frouxidão ligamentar, os olhos inflamados pelo suor e fumaça cotidianos, a pele machucada, o vento a lhe esbofetear... mas sorria.
Oprimido pela mochila, subiu no ônibus lotado, se apertou, apertou, pisou no pé de uma moça que lhe xingou de folgado, agraciou mais uma tensão no ombro esquerdo e quase rompeu de novo com as rótulas quando o ônibus estacou no ponto cantarolante em que desceria.
Passou o dia embevecido, olhando bobocamente o nada, trabalhando com as fadas que ele quase nunca acreditava. O maquinal já nem doía, o esforço habitual nem lhe comia. Ouvia puxões de orelha, corria com voz ignorada, tateava o almoço com a garganta velha de comida duvidosa, misturada a refrigerante barato e cheiro de frango bailarino, sob olhares de cachorros e moscas enfumaçadas e ele, resplandecendo, olhar fixo, cabeceando.
Bateu cartão-voltou pra casa. Levava um novo corte, uma fisgada em novo ponto do joelho, um pulsar escapular e uma vermelhidão na lupa, que só a afogada por uma latinha merecida de cerveja do fim do dia poderia curar. Chegaria, banharia, deitaria e, antes do dormiria, pensaria no que ocorrera antes do nascer do sol.
Acalentara-se de sorrisos durante todo o dia, encastiçara-lhe o coração e manteve-se aceso, fumegando... No outro dia voltaria, no outro dia veria, no outro dia sorriria, ainda mais. Toda a sua opressão agora se resumia a um café com leite, desimportante, ante o que de novo acontecia.
Apaixonara-se.
sexta-feira, 29 de junho de 2012
terça-feira, 26 de junho de 2012
Câmara
Aquela era sua cadeira havia trinta anos. Por trinta anos sentava-se atrás daquela mesma escrivaninha de madeira mordida e agora, entre ele e a tábua fria, um pedaço de papel descolava o que fora do que seria.
Nada se movia. A pálpebra não tremia, a veia não pulsava, os óculos não escorregavam por suor nenhum, não havia farfalhar de asas do lado de fora da janela às suas costas, nem mesmo o cérebro raciocinava. A única coisa que ele sentia era a bunda... ah, bunda! Talvez nunca notasse o quão gostoso fora tornar quadrada aquelas nádegas por trinta anos. Aquela cadeira fora a deformadora de seu corpo por tanto tempo, que era desesperador pensar que o levantar do dia seguinte não teria o sentar-se nela como meta.
O primeiro pingo de suor então caiu do lado esquerdo da testa para cima da folha, borrando o logo da empresa, o olho direito arregalou e, aos poucos, o comando acessou os ossos, os ossos foram acessando os músculos, que por sua vez acessaram a pele e moveram a carne perplexa que ia se levantando. Vagarosamente, caminhou a até a janela, fechou a persiana e apagou o abajur.
A caixa de canetas foi esvaziada e, em seu lugar, colocado tudo aquilo que lhe restara dos trinta anos ininterruptos, sem atraso, sem exceção, sem alguns domingos e sem feriados: um porta-retrato empoeirado com sua própria foto na idade em que entrara, um girassol de plástico que ficava no canto esquerdo da mesa, a carteira de trabalho pronta pra ser recarimbada e uma caneta azul quase acabando.
Como quem caminha pra forca, ele saiu da sala e, ao fechar pela última vez a porta que segurava o local de sua cadeira, o lustre, que há muito não acendia, despencou.
quinta-feira, 21 de junho de 2012
Afeto
Ele morava no décimo quinto andar do centro da capital. Trabalhava seis dias por semana há uma hora dali. Ia e voltava de bicicleta, paga em três vezes sem juros, fazendo caminhos arborizados, driblando o trânsito e a fumaçada.
A refeição matinal era composta por três fatias de pão integral, cereal, vitamina de grãos e uma bomba de açaí. Saía às oito, o dente polido e lavado, o cabelo penteado, o terno escovado, bicicleta no asfalto. Trabalhava (,) a contra gosto, sentado. Ao meio dia tirava da mochila um pote tamanho família recheado de proteínas, carboidratos, ferro, zinco e um suco saudável. Em uma hora comia, lia, dormia e retornava.
Às três em ponto, chá verde, chá branco, chá preto, papeava com os melhores colegas no fumódromo, e voltava às três e vinte pra sua cadeira espaldada, pra cuidar da papelada.
Voltava às cinco, pedalando, capacete posto, terno no encosto e uma garrafa tônica. Não jantava, comia uma maçã, ia ver televisão, lia um pouco de ficção e tomava um banho sem demora.
Nos intervalos da vida pagava conta, comprava água, regava planta, limpava a casa... por vinte anos não sustentara nem barriga nem estátua.
Então, como quem planta uma árvore, morreu.
Bronquite, asma, tuberculose e o câncer de pulmão. Os olhos vermelhos, pupilas inchadas, a bicicleta amarronzada, a roupa branca acinzentada, o terno preto esbranquiçado, a árvore seca assobradada.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
O Vento
O vento assobiava na fresta da porta entreaberta para a maquete da cidade, nos canos ressoava como sanfona e, por vezes, gritava desesperado por excesso de tempo e falta de espaço, nos condomínios abaixo era despercebido, o máximo de afeto que conseguia era uma cabeça virada ou uma segurada na saia, contra, não a favor.
Voava e incomodava, era só fecharem a porta pra se livrarem dele e de sua divagação perdida, descaminhada, sem saber pr'onde voava, sem foco, rumo ou objetivo, a não ser o de existir. E de que vale só existir? É tão efêmero e plural que até um ventilador pode lhe reproduzir, pode lhe representar, inclusive substituir. Pra que então há de existir?
Mas eu vi o vento voar. Eu vi o vento se condensar e transpirar melancolia. Vento não é símbolo de nada e talvez ele nunca chegasse a entender, até o dia que entendeu.
Abaixou sua cabeça, se livrou da vaidade, guardou seus julgamentos num baú póstumo de libertação e compreendeu que aquilo tudo não era só momento, que havia um firmamento e, em si, transcendeu.
O vento virou tornado: o vento via, o vento mexia, o vento existia, tudo o que havia de diferença era por conta de sua presença, de sua presença em si.
O vento não mais assobiava, o vento agora cantava e, cantando, me transformou...
Voava e incomodava, era só fecharem a porta pra se livrarem dele e de sua divagação perdida, descaminhada, sem saber pr'onde voava, sem foco, rumo ou objetivo, a não ser o de existir. E de que vale só existir? É tão efêmero e plural que até um ventilador pode lhe reproduzir, pode lhe representar, inclusive substituir. Pra que então há de existir?
Mas eu vi o vento voar. Eu vi o vento se condensar e transpirar melancolia. Vento não é símbolo de nada e talvez ele nunca chegasse a entender, até o dia que entendeu.
Abaixou sua cabeça, se livrou da vaidade, guardou seus julgamentos num baú póstumo de libertação e compreendeu que aquilo tudo não era só momento, que havia um firmamento e, em si, transcendeu.
O vento virou tornado: o vento via, o vento mexia, o vento existia, tudo o que havia de diferença era por conta de sua presença, de sua presença em si.
O vento não mais assobiava, o vento agora cantava e, cantando, me transformou...
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