terça-feira, 26 de junho de 2012

Câmara

Aquela era sua cadeira havia trinta anos. Por trinta anos sentava-se atrás daquela mesma escrivaninha de madeira mordida e agora, entre ele e a tábua fria, um pedaço de papel descolava o que fora do que seria.

Nada se movia. A pálpebra não tremia, a veia não pulsava, os óculos não escorregavam por suor nenhum, não havia farfalhar de asas do lado de fora da janela às suas costas, nem mesmo o cérebro raciocinava. A única coisa que ele sentia era a bunda... ah, bunda! Talvez nunca notasse o quão gostoso fora tornar quadrada aquelas nádegas por trinta anos. Aquela cadeira fora a deformadora de seu corpo por tanto tempo, que era desesperador pensar que o levantar do dia seguinte não teria o sentar-se nela como meta.

O primeiro pingo de suor então caiu do lado esquerdo da testa para cima da folha, borrando o logo da empresa, o olho direito arregalou e, aos poucos, o comando acessou os ossos, os ossos foram acessando os músculos, que por sua vez acessaram a pele e moveram a carne perplexa que ia se levantando. Vagarosamente, caminhou a até a janela, fechou a persiana e apagou o abajur.

A caixa de canetas foi esvaziada e, em seu lugar, colocado tudo aquilo que lhe restara dos trinta anos ininterruptos, sem atraso, sem exceção, sem alguns domingos e sem feriados: um porta-retrato empoeirado com sua própria foto na idade em que entrara, um girassol de plástico que ficava no canto esquerdo da mesa, a carteira de trabalho pronta pra ser recarimbada e uma caneta azul quase acabando.

Como quem caminha pra forca, ele saiu da sala e, ao fechar pela última vez a porta que segurava o local de sua cadeira, o lustre, que há muito não acendia, despencou.

2 comentários:

  1. É incrível a forma como consegui visualizar este homem e imaginá-lo dando adeus a sua sala. Tudo descrito tão perfeitamente que é possível que o leitor entre na cena e deixe de ser leitor para se tornar objeto figurante.
    Eu imaginei até mesmo o desconforto de se sentar muito tempo na cadeira a ponto de ficar com a bunda quadrada.
    Excelente texto Lucas, parabéns.

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  2. Hehehehehhehehhe poderia ser triste, mas também um livramento né?

    Muito bom!

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