domingo, 6 de março de 2016

a pele adequada

meia noite
festa rica num buffet de são paulo:
a debutante que viajou o mundo
os pais com olhos estalados
a esquisita e ordinária dona da propriedade
e o dono - velho, ereto e com o olhar de quem dirige o mundo
por fim, os amigos
gente fora de si que dança funk pela metade e curte sertanejo universitário
A festa estava pronta!
ah, também tinha eu
que ia trabalhar
tinha os seguranças que iam guardar
(agindo como leais cães de guarda)
e todo o pessoal da senzala
mas esse pessoal nunca é importante.

Figurino dos homens:

aquilo que chamam de esporte-chique
deve ser coisa de jogador de futebol que ficou rico
o tipo de roupa que o Neymar usou quando foi depor
todo mundo igual, só variando a cor da camisa
Figurino das mulheres:
roupa brilhante e brega que não se usa em mais nenhuma ocasião
sapatos rasga-pele
em geral loiras, de cabelo liso

Havia uma negra,

mas ela estava muito embranquecida.

Eu não estava de figurino

estava vestido normal
camiseta verde
all star surrado
e uma calça discreta.
A festa já estava rolando
a mãe reclamando
a aniversariante segurando seu psicológico
os adolescentes tentando agir como adultos
a música:
in
su
por
ta
vel
men
te
alta
(e olha que eu já frequentei uns bate-cabeças
e sou adepto da boate viado com catuaba)
tocando americanices
e música de projeção da frustração.

Era impossível não ver o problema da divisão de classes

ele pairava sobre o ambiente como um fantasma
sugando tudo e a todos
quem via era oprimido
quem não via já estava abduzido
ou pelo menos havia esperança.

Não era possível suportar sóbrio.


Bebi cerveja

depois um vinho caro
depois mais cerveja
mais um pouco e eu tinha bebido o uísque

fiquei de canto

lubrificando a mente

um segurança me fitou


Circulei

bebi mais um pouco
assisti aos clipes que passavam no telão que
curiosamente 
era música da favela

começou a tocar música da favela

com clipes na favela
letras sobre a favela
e os caras cantando
os preto e os branco
era muito estranho.

Resolvi dar um descanso pra mente e entrei na 

"área reservada para pessoas autorizadas"
eu era uma pessoa autorizada
eu ia trabalhar na festa
ali era meu camarim
e eu já tinha entrado e saído de lá pelo menos umas cinco vezes.

Entrei

e antes mesmo que pudesse me abaixar até a minha mochila
pra pegar uma roupa de frio, uma vez que o ar condicionado estava assassino,
entraram
como cães de guarda
como quem da um pé na porta
dois seguranças
o que me fitou,
com seu radinho enfiado na orelha,
e um outro de rosto pontudo
negro
me olhou fixamente e perguntou com quem eu estava
- com o mestre de cerimônia.
- ah tá...
- to com cara de penetra? - disse eu colocando a blusa vermelha
era moletom, foda-se
- não...
tentou explicar que tinha lista e ele não tinha me visto entrar
foda-se
olhei com essa cara
foda-se
E me sentei no cubículo que me era permitido esperar.

Não sou negro

sou branco
mas 
por um minuto
me senti como os garotos e garotas negras
que são perseguidos em lojas e supermercados
realmente
dói
é revoltante
é bizarro
uma série de sensações
e isso porque meu figurino não estava adequado

e pra quem não tem a pele adequada...?





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