terça-feira, 25 de setembro de 2018

Morcegos I

- Você viu a quantidade de morcegos que passou ali?
- Olha os morcegos!
- Não vi...
- Mãe!
Quem viu, viu. A nuvem de morcegos contornou a copa frondosa da árvore mais antiga da cidade e, inesperadamente, mergulhou no lago, aberto para visitação à noite. Os dois homens e os dois garotos estavam arrebatados com a mesma cara. Depois se entreolharam com espanto e riso nervoso. Em seguida, procuraram cúmplices externos.
Os garotos viram dois homens vestidos de roupa séria, os homens viam moleques da idade de seus filhos.
Seus olhos se fitaram por alguns segundos, um nem sabia se dirigir ao outro.
- Eles morreram? - falou o mais novo, por fim.
- Não sei, deixa eu ver.
Quando o outro garoto corajosamente tirou a camiseta e saltou no lago, um dos homens pulou também, de sapato e tudo.
Os que haviam ficado se encararam.

O lago estava frio, mais frio do que costumava ficar à noite, pois havia acabado de chover uma chuva gelada com granizo. O homem sabia nadar, mas não conseguia enxergar nada e a imagem de um corpo de menino afogado o aterrorizou tanto que ele começou a gritar qualquer coisa. De repente, uma mão, claramente uma mão, com cinco dedos, agarrou o seu calcanhar e o puxou pra baixo com uma força desproporcional ao seu tamanho.


O encarar de menino e homem era tão intenso que eles nem repararam a cena acontecida a poucos metros de distância.

- Ah... é...
O homem não sabia o que dizer, queria consolar o garoto de alguma maneira, mas não sabia como.
- Tudo bem, o Alvinho vai voltar - disse o garoto de repente.
- Vai... ele vai... - respondeu o homem espantado.
- Ele sempre volta - continuou o menino. -  Uma vez nós dois pulamos de um penhasco e eu não pulei, né, porque eu não quis, e o Alvinho pulou, tinha mais de um quilômetro de altura. E outro dia ele subiu numa árvore gigante pra salvar a gatinha que tinha ficado lá em cima.
- Se você diz, ele vai voltar! - disse o homem secretamente mais encorajado.
- O senhor não vai pular?
- Eu não... alguém precisa cuidar de você.
- Eu não preciso que ninguém cuide de mim o Alvinho já disse que eu sou grande.
- Esse Alvinho...
- O Alvinho sempre tem razão, e se ele diz que eu sou grande eu sou grande. Olha!
O menino começou a puxar a camiseta por cima da cabeça e, antes que o homem pudesse fazer alguma coisa, pulou na água gelada do lago e afundou. Contrariado, o homem correu e saltou atrás, de sapato e tudo.

domingo, 16 de setembro de 2018

os mortos voam livres

Felizes os que dormem
pois
planam e repousam sobre tudo que é nada
e não compreendem nada que o tudo oferece

Felizes os cegos
que não tem obrigações éticas
ou vislumbres vindouros
Pra eles suicídio é nada
e morrer é tudo

Não queiram abrir os olhos
pois depois não
vai dar mais
pra
fechar

E ainda que se fechem
a
mente
sagaz jamais 
esquecerá o que viu em consciência
que vagarosamente
conspira o despertar

Felizes os que morrem
pois escapam das garras do tempo e seus aprendizados
vivendo de outra forma
com a forma que o mundo desconhece

Voando livres
planando o tudo
vivendo o nada
com preocupações reais.


terça-feira, 14 de agosto de 2018

decisão

decidi viver a vida ferozmente
ancorado no meu equilíbrio
amando e me permitindo
sem medo da minha sombra
pleno
coração
razão
no meio caminho
e estou feliz
por reconhecer a vida terrivelmente bela
em que estou
e amo estar

segunda-feira, 9 de julho de 2018

rancor

O rancor que eu guardo
aquece meu coração
o amargor
é como café preto matutino
A gente sabe que não faz bem
mas o traga mesmo assim
... e com prazer

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Deixe o demônio trabalhar


Deixe
Deixe que seus demônios se manifestem
Deixe
Deixem eles tomarem o seu corpo
Como num bacanal divino
Dionisíaco

Sem se preocupar com a felicidade
Pois o que é a felicidade?
Pouco importa!

Não importa a tristeza também
Não importa 
Não importa choro de ninguém
Não importa 
Aquela questão com a mãe
aquela preocupação com o futuro do dinheiro
Não importa 
com o futuro do dinheiro
Não importa 

Deixe que os seus dragões engulam esses problemas
dilemas
e os vomitem no dia seguinte
Como num bacanal divino
Dionisíaco

que este fogo que se acendeu
vai se apagar
e quando voltar pro corpo
você perceberá
que nunca mais voltará

que o que os demônios trazem
os anjos lapidam!

Deixe o demônio trabalhar

Líquido

Eu te adquiro
numa liquidação
sem compromisso
com devolução

ao nada que você era
antes de mim

Eu vou te consumir
como manda a programação
indiretamente instituída pela televisão

e quando você
parar de corresponder
à minha íntima inspiração

e quando você
parar de corresponder
e me trazer frustração

eu te troco por outro
de novo
numa liquidação

ERA

Na semente era amor e desejo
nos primeiros passos
e entendimentos
nos primeiros clarões de pensamento

era cale-se
segure-se
entupa-se
ninguém está nem aí pra você
mas parece que está

Do lado de fora
era tudo normal
tão normal
tão igual

Eu descia escadas
achando que subia
Eu me repetia como quem sabia
e assim seguia

E lutava pela sobrevivência
pela eficiência
e ainda vivi com um parasita divino
um funcional inquilino
traficante de destino.

E ao me libertar
não me libertei
só achei
Não tinha espaço
era um útero aconchegante, mas seco
pequeno, apertado
e logo eu
e logo eu que tinha asas tão grandes

Fui pisado por essas patas
que estava na família errada
renegada
odiada
pastavam em paragens forasteiras
que
sem eira nem beira
implorava por clemência
por ajuda
por paciência
por mãe

ele só queria uma mãe

Eu sou fruto de uma carência

pois ela só queria uma família

Nela fui criado
para corresponder ao que só faz interferência
Mas tal parasita não é meu
não sou eu
e não pode ser integrado
de jeito nenhum
não pode ser integrado

Veio de um sistema errante
para o sistema errado
Não sou eu quem vai
resolvê-lo
não sou eu quem vai amá-lo.

sábado, 2 de junho de 2018

inimigo


Eu tenho um inimigo mortal
Ele sabe quem eu sou
Me conhece profundamente
e torce contra mim

Ele me sabota, sabe onde sou vulnerável
sabe dos medos, dos anseios, sabe de mim
Vive no poço
alimentando os demônios

Este inimigo sou eu
e eu só consigo vencê-lo ao me aniquilar
não sei se sabe que sei dele
não sei se sabe mais nada fora o mundo escuro

quarta-feira, 9 de maio de 2018

bichos


Tem bichos andando no meu corpo
Eu os vejo
Eu os sinto coçar na pele

Eu permiti que bichos entrassem
Para impedir que bichos viessem

E estou me sentindo bicho:
malquisto
pequeno
um fardo
um incômodo

Mas não sou o bicho
Eu sei
Eu não sou o bicho

Há bichos que me consomem
não sei por quê
não sei responder esta pergunta sem me ofender

Não estou no meu lugar
Eu não pertenço a esta casa
a este corpo
a este mundo

E isso me inebria de ódio
mas contra quem devo esbravejar?
Quem é o objeto do meu ódio?

A mulher que me punha de castigo no milho aos seis
O homem que me torturou desde os quatro?
Ou a mulher que me privou de tudo que não fosse ela?

Eu devo realmente culpar essas pessoas?
Ou segurar tudo sozinho
como sempre?

Tem realmente muito vivendo em mim...

da lama ao caos


Já chamaram minha vida de caótica
pelo menos 
umas
três 
vezes

Caótica
imprevisível... tentaram me fazer sentir culpa

Mas eles não entendem de caos
Não entendem nem de ordem
Tem a ideia de ordem como uma mesquinharia

Eu não estudo as estrelas
Eu sou uma.
Estudando sua luz eu encontro a minha pra iluminar outros

Mas tem gente que não pode ver uma luz
que vira mariposa
sem conhecer o que brilha dentro de si

Saiam de suas cavernas!
Ou
pelo menos
não gritem contra quem tem coragem de ser o que é
“Não da à luz a uma estrela brilhante
Quem não carrega o caos dentro de si’’

Eu sou o caos
realmente 
Mas aos vossos olhos
que não sabem olhar para além da letra que mata
o espírito que vivifica

Eu tenho orgulho de poder dizer que sou louco
Frente a esses sãos
desinteressantes e inflamados
contra o que foge a seu modo de ver o mundo

Chamaram minha vida de caótica
mas a vida desses eram pálidas
tristes
solitárias
e insuficientes

Prefiro ser caos
prefiro ser imprevisível

domingo, 11 de fevereiro de 2018

perdi o rumo

No dia que te conheci
Também vi um disco voador
E fiquei todo avoado
Perdi o caminho
Errei a rua
Cheguei tarde em casa
Completamente fora de mim
Chapado sem usar nada
Com a cabeça nas nuvens
E o coração descontrolado

auto destruição

Não quero me apaixonar por você
Quero me apaixonar porque gosto de estar apaixonado
Porque gosto de como os dias se colorem
De como a depressão se esvai
De como o meu cérebro se agarra aos hormônios que você despertou

Eu poderia ficar dizendo que você é único
mas você não é
Eu já me apaixonei várias vezes antes
Várias vezes mesmo
Sou desses que se apaixona rápido

(Mas é porque eu curto um caos
E qualquer sensação de mudança 
mexe com meus líquidos
e tudo fica vivo
Por isso me apaixonaria por você
Porque não há nada mais excitante)

A paixão é a droga mais forte que eu já tomei
- e eu já tomei drogas bem fortes -
Mas nem uma me embriaga tanto

Poderia ser você
Poderia ser qualquer outro

Mas o Universo tem a mania de tentar me corrigir
E eu teimo que sou incorrigível

Nesta insônia
enquanto divagava
descobri:

Eu gosto de estar apaixonado
gosto de criar caso
gosto de caotizar
gosto de me destruir
- Ah, como eu gosto de me destruir -

E o que melhor que este fogo pra isso
não?

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

como?

A fé e a não fé
Andam juntas em mim

O universo tem significado
E sentido nenhum

Há Deus
E não há nada

Tenho toda segurança de quem eu sou
E certeza nenhuma

A paz e a perturbação
Oscilam aqui

Eu sigo sabendo de tudo
E não sabendo de nada

Não sei nomear o que sinto
E nem sei fingir que posso

Trabalho com iluminação
E me sinto no escuro

Como posso ter chão se amanhã
tudo que me disse sim me diz não?